Opinião

A fé e a coroa

A questão jurídica e o “abuso de poder religioso

Por Lucas Cruz Neves
Publicado em 22 de julho de 2020 | 03:00
 
 
 
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A aclamada série “Game of Thrones” foi uma adaptação da obra “As Crônicas de Gelo e Fogo”, do escritor norte-americano George R. R. Martin. Na sexta temporada, o ingênuo rei Tommen Baratheon anuncia uma “aliança entre a fé e a coroa”. O desfecho da inadvertida fusão entre Estado e religião culminou, obviamente, em um banho de sangue – no caso da ficção, um banho de fogo. Ao testemunhar a carnificina causada por seu equívoco, o rei, visivelmente arrependido e às lágrimas, retirou a coroa e se suicidou, jogando-se de uma torre da Fortaleza Vermelha.

Em recente julgado do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Edson Fachin considerou o “abuso de poder religioso” um motivo para a cassação de mandatos políticos. Atualmente, a Justiça Eleitoral entende que apenas os abusos de poder político e econômico podem resultar na perda do mandato.

A questão provocou forte reação na mídia e nas redes sociais. Para Fachin, a imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, devendo o Estado e a religião ser mantidos separados para garantir a livre escolha dos eleitores. Ainda propôs a inclusão do abuso de poder de autoridade religiosa em ações que podem eventualmente levar à cassação de mandato de políticos.

O ministro Alexandre de Moraes discordou, sustentando que a hipótese de “abuso de poder religioso” não estaria prevista expressamente na lei. O julgamento foi interrompido por um pedido de vista, e a retomada do julgamento deve ocorrer em agosto.

Permito-me discordar de tal posicionamento porque esse pensamento (exageradamente normativista) encontra-se superado desde a segunda metade do século XX. Demais disso, a punição discutida no julgamento é de natureza cível, razão pela qual não se submete ao princípio da reserva legal (de natureza exclusivamente penal).

A laicidade do Estado no Brasil existe desde a Constituição de 1891. Religiosos, ateus e agnósticos são muito bem-vindos ao debate político, sempre em igualdade de condições, mas dogmas e crenças jamais poderão contaminar o exercício laico das funções do Estado. Os princípios da liberdade de escolha dos eleitores e da igualdade de oportunidades entre candidatos jamais poderão ser suprimidos por qualquer espécie de abuso de poder. Fachin está certo: “Este debate precisa ser ampliado no Brasil”.

Um Estado democrático tem que ser obrigatoriamente laico. Seria uma violação hedionda do princípio da isonomia estabelecer diferenças entre as pessoas por suas escolhas individuais. Ao contrário, uma República genuína deve garantir o direito das pessoas de ter opções privadas. Há que se garantir a máxima liberdade, com o único limite de não prejudicar o direito alheio. Por razões religiosas ou morais, pessoas podem optar por não fazer aborto, por não se divorciar, por não ter relações sexuais senão para reprodução, por não se casar com pessoas do seu mesmo sexo. São opções individuais, que devem ser respeitadas. Mas nenhuma crença, religião, culto ou seita pode pretender impor suas concepções e proibições aos demais membros de uma sociedade política.

Em “Game of Thrones” e no mundo real, a impura união entre a fé e a coroa sempre culminou em sangue, fogo e lágrimas. Basta ler, ainda que superficialmente, a ficção e a história.

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