A Prefeitura de Belo Horizonte iniciou uma série de obras para transformar o imóvel onde funcionava um centro de saúde, no bairro Serrano, na região Noroeste, em uma casa. O espaço, que estava vazio desde julho de 2022, está sendo adequado para abrigar um grupo de indígenas venezuelanos, da etnia Warao, que já ocupa o local desde o final do ano passado. São cerca de 50 pessoas, divididas em 14 grupos familiares. As obras são realizadas pela Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), e devem ser concluídas em quatro meses. O investimento previsto é de R$ 130 mil.
"A lógica de utilização do espaço deles é diferente da nossa, é uma cultura diferente. Eles não usam camas, por exemplo. Dormem em redes. Só que os nossos prédios não são construídos para suportar redes", explica a gerente dos serviços de alta complexidade da prefeitura da capital, Sandra Ferreira. O projeto de adequação do imóvel prevê a construção de um muro, a instalação de um equipamento para o escoamento da água, além da criação de um espaço onde o grupo possa utilizar as grelhas, necessárias para a preparação dos alimentos. "São adaptações para sanar alguns problemas de convivência com a vizinhança", acrescenta.
Entre os problemas relatados por quem mora próximo ao espaço onde os indígenas estão abrigados estão o mau-cheiro, a sujeira, o esgoto, entre outros. Segundo o aposentado Genildes Rodrigues Assunção, de 60 anos, que reside na região desde 2012, a situação já foi relatada para a prefeitura da capital. "Antes a gente tinha problemas com o barulho, mas parou. A Guarda Municipal começou a passar na rua com maior frequência, e isso diminuiu. Só que o esgoto ainda continua, a fumaça por causa dos assados que eles fazem também. É algo que vai para nossas casas, isso sem falar na sujeira", relata.
Como forma de protesto e com o objetivo de alertar o poder público sobre a situação, o aposento colocou cartazes no portão da casa onde mora. "Se fosse na nossa casa, poderíamos deixar o esgoto sair na rua?", diz o comunicado. Um outro cartaz cobra uma solução para os problemas. "Onde está a ajuda que falaram?", questiona.
A denúncia é semelhante a feita para a reportagem de O TEMPO por uma outra moradora da região, que por medo de represálias pediu para não ser identificada. "A gente se preocupa com as condições de higiene. Já encontramos fezes na rua, um cheiro muito forte de urina. Acredito que eles não devem ter sido criados como a gente, mas é uma situação que tem incomodado muito atualmente", aponta.
O mecânico Diego Magnago, mecânico, de 41 anos, reside na região desde 1996. Ele também compartilha as denúncias dos outros dois moradores do bairro. Diego afirma que não é contra a manutenção do grupo no espaço, mas cobra por melhores condições de higiene. "É uma situação que nos expõe também. A prefeitura fala que vai fazer um trabalho de ressocialização, mas o que vimos é gente usando drogas, agredindo mulheres e crianças trabalhando. Vão esperar até quando para fazer algo?", relata.
A Prefeitura de Belo Horizonte afirma ter conhecimento das reclamações de quem reside próximo ao imóvel. O município garante que tem feito trabalhos a fim de orientar e conscientizar sobre as diferenças culturais. "Representantes da Prefeitura e da Cáritas Brasileiras já realizaram reuniões com a comunidade, reforçando, inclusive, a importância do acolhimento para este público, que encontra-se em vulnerabilidade", afirma, em nota.
De acordo com Sandra Ferreira, o acolhimento do grupo tem sido um desafio por causa das diferenças culturais e da língua oficial — o Warao, o mesmo que dá nome ao grupo. "Quando esse público chega para o município, é nossa responsabilidade oferecer proteção. Colocamos nesse espaço, que estava desativado, pois precisavam de um abrigo. Tivemos que fazer algumas reformas, como o telhado, a adaptação dos banheiros coletivos. Hoje, fornecemos a alimentação deles, que é bem peculiar, com carne de peixe, de frango, além de arroz, legumes e, principalmente, mandioca", explica.
O espaço
A reportagem de O TEMPO esteve na região onde o imóvel que abriga o grupo está localizado. Da porta e de um imóvel ao lado foi possível observar um pouco do espaço na manhã desta quarta-feira (27 de março). Foram vistas crianças, sendo que algumas delas vestiam uniformes da rede municipal de educação. Por volta de 13h, elas foram levadas por uma van escolar até uma unidade de ensino.
No espaço, algumas mulheres e dois homens se alimentavam em uma área de convivência. Já no entorno, algumas poças com esgoto se espalhavam pela rua Ocidental, localizada na esquina — problema que deve ser solucionado pela Prefeitura de Belo Horizonte, conforme informado acima.
"Estamos esperando o material chegar para fazer as adaptações da prefeitura", disse o cacique Santos Tovar. A entrevista foi interrompida por uma organização que acompanha o grupo.
A chegada dos indígenas no Brasil
Os indígenas Warao, cuja tradução quer dizer "povo da água", representam a segunda maior etnia da Venezuela, com cerca de 49 mil pessoas, conforme o último Censo feito no país latino, em 2011. Eles subdividem-se em centenas de comunidades, que se estendem por quase todo o estado de Delta Amacuro e parte dos estados Monagas e Sucre, às margens do rio Orinoco.
O grupo sobrevive com a pesca, a coleta de alimentos, a agricultura e com o artesanato feito a partir do buriti — palmeira de origem amazônica. "Eles possuem a própria medicina, um conceito específico de educação, uma cultura muito peculiar", explica a gerente dos serviços de alta complexidade da prefeitura, Sandra Ferreira.
O grupo chegou ao Brasil em 2014. Eles deixaram a Venezuela durante um período de crise política e econômica. Os indígenas procuraram abrigo, inicialmente, nos estados do Amazonas e de Roraima. Dois anos depois, em 2016, eles começaram a migrar para os estados do Pará, Maranhão e outros da região Nordeste.
As regiões Centro-Oeste e Sudeste foram alcançadas pelo grupo em 2019. No ano seguinte, em 2020, novos grupos foram identificados na região Sul do país. "Eles vieram descendo pelo país. Deslocamento em ônibus, contratação de transporte, como nômades. Os primeiros grupos chegaram em Belo Horizonte em 2020", relata Sandra.
Na capital mineira, os indígenas foram acolhidos pelos jesuítas - uma ordem religiosa católica. Eles foram levados para um imóvel alugado pela congregação no bairro Santa Amélia, na região da Pampulha. No entanto, o espaço precisou ser devolvido no fim do último ano. A suspeita é que o proprietário do imóvel tenha pedido a devolução do local por causa do desentendimento do grupo com os vizinhos.
Desde então, os indígenas foram instalados no imóvel onde funcionava o centro de saúde Serrano. "Parte foi para o abrigo São Paulo, e o outro grupo para a casa dos jesuítas. O município acompanhou desde o começo, com o trabalho socioassistencial. Hoje, esses serviços são mantidos sem apoio financeiro de outros entes federados, e dentro das possibilidades espaciais orçamentárias do município", acrescenta.
O grupo recebe assistência de uma equipe técnica, formada por um coordenador, psicólogos, assistentes sociais, educadores, porteiro e serviços gerais. Eles estão cadastrados nas redes municipais de saúde e de educação.
"Foram inscritos no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal), recebem o Bolsa Família, e outros programas assistenciais. Nas escolas, há um grupo que atua com essas pessoas migrantes, é realizado um trabalho voltado à cultura deles. Importante destacar que eles estão no Brasil na condição de imigrantes refugiados, por isso possuem todos os direitos da assistência social", finaliza Sandra Ferreira.