Histórias

Há 3 anos, OMS declarava pandemia; há 2, eles eram intubados e sobreviveram

Três mineiros relatam os dias de medo que enfrentaram, no limiar da vida, e a alegria de voltar para casa


Publicado em 11 de março de 2023 | 06:00
 
 
 
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Há 1.095 dias, 699.310 brasileiros acordavam todos os dias e seguiam sua rotina, que talvez fosse com a família, na escola, com amigos. E também há 1.905 dias, algo mudou. Há exatamente três anos, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia de Covid-19, que matou todos esses quase 700 mil brasileiros. Hoje, resta o luto pelos que se foram e por tudo o que se perdeu. Para quem passou pelo pesadelo de chegar a ser intubado devido à doença e sobreviveu, fica também a alegria de olhar para trás, saber que o pior passou e continuar vivendo.

O TEMPO conversou com três mineiros que, em 2021, o ano mais duro da pandemia, em número de casos graves da doença, encararam de frente a possibilidade da morte em hospitais do Estado. Eles relembram os momentos de horror, alívio e amor pela família e ajudam a documentar um momento histórico no país, que é o segundo com o maior número de mortes por Covid no mundo, atrás somente dos EUA. Assista ao vídeo com depoimentos:

"A vida da gente é tão frágil"

Para a engenheira Ana Clara Simões, 29, a rotina se tornou um espetáculo diário depois de passar 97 dias internada, um terço deles em coma. “Nossa, tomar banho é maravilhoso, poder esfregar seu cabelo é muito bom. Você poder levantar, ir ao banheiro e fazer xixi é muito bom. Sair com seus amigos, uma coisa que eu fazia todo final de semana, hoje tem uma importância absurda. Você ver seus pais...”, descreve, entre lágrimas e sorrisos de quem passou por um trauma e se recupera dia após dia. 

Ela foi infectada pelo coronavírus em agosto de 2021, pouco tempo antes de a primeira dose de vacina ser disponibilizada para a sua faixa etária. Mesmo sem comorbidades conhecidas, seu quadro se deteriorou tanto que ela entrou em um coma que durou mais de um mês quando foi internada. “Eu tinha um amigo que trabalhava no hospital e me lembro dele falando comigo quando eu estava em coma. Ele disse ‘Ana, sai daí, a gente precisa marcar um churrasco, a gente sente sua falta’. Eu me lembro de chorar escutando ele falar, mas não conseguia abrir o olho, não conseguia reagir”, conta.

Quando acordou do coma, o medo de voltar a adormecer era tanto, diz Ana, que ela não pregou os olhos até ser obrigada a tomar um remédio para dormir. O alívio de despertar veio seguido por mais sustos: seu estado de saúde continuou a piorar e ela precisou fazer um dos procedimentos mais extremos para garantir a respiração, uma pleurostomia aberta. A cirurgia deixa um “buraco” nas costas do paciente e os pulmões ficam expostos para se expandir. Ainda depois de receber alta, ela passou meses sem poder molhar as costas diretamente, por exemplo.

Mesmo para uma pessoa tão jovem, a morte tornou-se uma vizinha durante a doença. “O som mais horrível que eu já escutei é o da maca que leva os corpos, que passa à noite para levar as pessoas que morreram. É um barulho de ferro. No hospital, tinha um cara na minha frente e eu vi ele morrer”. Agora, Ana pensa na vida. “A vida da gente é tão frágil. A vida muda totalmente. Não é a mesma coisa. Eu me lembro do dia em que saí do hospital e vi o céu. É muito bom sentir o ar, ver sua família, sua irmã falando bobeira. Tem dia que até hoje eu acho chato, cansativo. Eu sou humana, não virei a madre Teresa de Calcutá, mas você aprende a ver a vida de uma maneira completamente diferente”.

Ana conta sua história de sobrevivência à Covid-19 entre lágrimas e sorrisos

Ana conta sua história de sobrevivência à Covid-19 entre lágrimas e sorrisos (Maíra Cabral/O Tempo)

"Uso máscara e pareço um ET"

Uma corrente de oração com centenas de pessoas se formou durante 54 dias na torcida para que a professora Adriana Martins, 54, saísse do hospital quando foi internada com Covid-19, em 2021. “Meu marido fez uma corrente de oração com pessoas de tudo quanto é religião, uma ia passando para a outra. Todo dia, 300 pessoas recebiam o boletim diário de como eu estava”, lembra ela, agora em casa e de volta para a família e para os amigos.

Ela acredita que se infectou quando estava cuidando do pai, idoso, que tinha contato com um cuidador que ficou gripado. Isolada do restante da família no quarto, no início da doença pensou que o quadro não fosse passar de alguns dias de incômodo, até que foi encontrada desmaiada pela filha e levada às pressas ao hospital, de onde só sairia quase dois meses depois.

“Um dia, chegou uma tropa no quarto, o médico, o chefe do plantão, um psicólogo, um fisioterapeuta. Eu olhei e pensei ‘É agora que vou ser intubada’. Eu estava quase pedindo para ser, porque não conseguia respirar. Sempre fui muito positiva e confiante, tentando passar para as pessoas que não era nada. Mas dá medo, sim. Nas reportagens, intubar era sinônimo de morrer. Mas eu tive muita força para tranquilizar minha família, eu mesma liguei”, rememora.

O tempo no limiar da vida a tornou mais decidida sobre o que quer, agora que está de volta à rotina. “Estou curtindo a vida como deveria”, diz. Desde que saiu do hospital, assistiu ao casamento da filha mais velha, Mariana, e terminou seu mestrado em educação. “Tive que passar por um processo de terapia e me tornar uma mulher mais forte. Eu sou outra, muito melhor hoje”.

Adriana, 54, vive a alegria de voltar para a casa com a família, após ter passado 54 dias internada por Covid-19

Adriana, 54, vive a alegria de voltar para a casa com a família, após ter passado 54 dias internada por Covid-19 (Fred Magno/O Tempo)

Antes com a saúde impecável, segundo ela, hoje Adriana precisa se cuidar mais, pois a função dos pulmões não retornou à normalidade. Ela chegou a contrair Covid mais uma vez, na virada deste ano, mas, com quatro doses de vacina, desta vez a doença foi apenas um susto. Na rua, diz que é uma das poucas que continua a utilizar máscara — o Ministério da Saúde mantém a recomendação para que pessoas com saúde fragilizada mantenham o item de segurança em locais com aglomeração. “Fico parecendo um ET. Tem gente que me pergunta se a Covid voltou. Para algumas pessoas, ela não vai ter problema nenhum, mas para quem tem comprometimento no pulmão, será sempre um risco”.

"Anotei todas as minhas senhas bancárias. Se eu não voltar, estão aqui"

Praticidade, fé, medo, instinto de sobrevivência. Tudo isso se misturou no empresário Silas Suriba, 63, quando ele era encaminhado para a intubação, em 2021. “Um dos meus dez irmãos estava junto. Eu lembro que pedi uma caneta, papel, anotei todas as minhas senhas bancárias e da minha empresa e disse: ‘Se eu não voltar, estão aqui’. Isso ajudaria a facilitar a vida da Raquel, minha esposa, e do meu irmão, meu sócio”, diz.

Em silêncio, ele tinha preocupações menos práticas naquele momento. “Tive uma conversa muito particular com Deus. Eu disse: ‘Quero muito voltar, mas não posso reclamar da minha vida. Não tenho filhos e meus dez irmãos e minha esposa vão sofrer. Mas, se eu tiver que ir, estou em paz, tenho certeza sobre para onde estou indo. Se eu tiver que voltar, gostaria muito’”, compartilha.

Dez dias depois, voltou. “Naquela semana, eu soube que, quando eu estava internado, muitos conhecidos em Betim faleceram naqueles dias”, lembra. Hoje, ele recuperou a maior parte dos 17 quilos que perdeu durante a internação e diz que sua força retornou a “90%”  da normalidade.

Silas diz se sentir 100% recuperado após ter sido entubado devido à Covid-19 em 2021

Silas diz se sentir 100% recuperado após ter sido intubado devido à Covid-19 em 2021 (Ronaldo Silveira/O Tempo)

Mesmo com a agonia da internação, decidiu não se vacinar contra a doença, decisão que também foi tomada por metade de sua família, relata. A recomendação dos órgãos de saúde, entretanto, é que mesmo quem já teve a doença tome todas as doses de vacina disponíveis, pois ainda é possível se infectar novamente.

"Sistema de saúde tem que aprender"

Na avaliação do pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Christovam Barcellos, o sistema de saúde brasileiro falhou. Em março daquele ano, o Observatório Covid-19 da instituição chamou aquele de o “o maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil”. Passado o trauma desse momento, é necessário aprender, defende Barcellos.

“O sistema de saúde tem que aprender. Uma das piores tragédias da pandemia foi o colapso dele. Passamos por duas ondas em 2020, com bastante casos e mortes, mas a pior fase foi em 2021, quando os hospitais lotaram e faltou oxigênio, profissionais da saúde, kits de intubação. Não podemos mais permitir isso. O sistema de saúde tem que estar preparado para novas ondas que possam surgir”, diz. Com a crise sanitária, hospitais precisaram reforçar estruturas e só as instituições estaduais de Minas, por exemplo, receberam novos 590 leitos de UTI, segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG).

Antes da Covid-19, a última pandemia nessa escala havia sido a da gripe espanhola, no final dos anos 1910. Não há garantia, porém, de que a próxima ocorra somente daqui a cem anos, sublinha Barcellos, por isso a preparação de governos para as crises deve ser constante. “Existem milhões de tipos de vírus circulando no mundo. Alguns estão confinados em certa cadeia ecológica que envolve um animal, um ambiente, e é transmitido apenas ali. O problema é quando isso extravasa para a sociedade humana, com nossa capacidade de propagação. Hoje em dia, com transporte aéreo, navios circulando pelo mundo inteiro, é impossível conter”.

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