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Glaura Santos se lança no mar poético com 'Acesa'

“Acredito num estar poético, num estado de atenção com a vida, que é o que me faz sentar pra escrever, diz ela

Por Patrícia Cassese
Publicado em 04 de agosto de 2021 | 16:53
 
 
 
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Escritora e designer gráfica, a mineira Glaura Santos conta que começou a escrever "Acesa", livro de poesias que acaba de aterrissar nas  prateleiras devotadas a lançamentos de livrarias físicas e virtuais, no exato momento em que sentiu que de fato havia terminado seu livro de estreia, “Todo mar vai ser você”. "Aconteceu simultaneamente, o encerramento de um e o começo do outro", diz ela, para em seguida falar do seu processo de criação. "Meu impulso criativo vem sempre de experienciar algo com muita intensidade, me deixar tocar e ser preenchida por aquela experiência, que pode ser uma vivência minha ou vir da narrativa de outra pessoa, de um filme, de um livro, uma conversa. A escrita, pra mim, é transbordamento", pontua, acrescentando que esse transbordar pode ser o de uma falta, de uma paixão, de um tormento ou de uma experiência com a arte, com a beleza, com a inquietação. "'Acesa' traz tudo isso. Vem com a chama de um olhar atento e do coração aberto. É pulsão de vida, uma reverência ao feminino e ao amor em todas as suas formas, um chamado de atenção aos próprios desejos, ao sutil, às relações. E, nesse sentido, um chamado de atenção ao feminino que há em todo mundo", complementa.

Antes mesmo de adentrar o conteúdo, "Acesa" chama atenção do leitor pelo projeto gráfico, assinado pela autora, e no qual a cor vermelha se destaca, assim como a presença de um recorte, uma fenda, na capa, que, ao ser aberta, revela um coração, antes apenas entrevisto. "Quando pensei na capa vermelha com essa fenda, que ao mesmo tempo esconde e revela um coração, achei que o recado estava dado. Sexo e amor se misturam, revelam-se um ao outro, são complementares. A fenda é uma referência ao sexo feminino, mas pode ser também um corte, uma ferida, um vazio que deixa exposto o coração. E é um coração visceral, vermelho no rosa neon. Isso também diz muito sobre a minha poesia", situa. 

Para Glaura, design e poesia se encontram no poder de síntese. Portanto, prossegue ela, o o primeiro precisa traduzir visualmente a essência de um espetáculo, produto, livro, artista, projeto. "E poesia também é síntese, é transformar em palavra a essência de um momento, de algo sentido, vivido ou imaginado. É essa relação de fortalecimento da identidade de um no outro que eu busco nos meus livros", localiza.

O prefácio, por seu turno, é de Cris Guerra, que lembra que "a poesia de Glaura já nasceu grudada à pele dela". Em tempo: a publicação de “Acesa” foi viabilizada com o apoio do Ministério do Turismo e do Governo de Minas Gerais, por meio de edital da Lei Aldir Blanc. O livro, que tem 102 páginas, está disponível no site glaurasantos.com.br, pelo valor de R$49,90. 

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista

O material a respeito do livro, encaminhado à imprensa, fala dos tempos duros, hoje enfrentados. Na sua opinião, qual a importância de resistir através da arte? E qual o papel da poesia, em particular?
Vivemos uma realidade tão impensável, tão cruel, hoje, que a poesia parece, ao mesmo tempo, fora de lugar e absolutamente necessária. O espaço da arte, da poesia, é o da imaginação, e nele é possível construir novas realidades, novos rumos, repensar caminhos. É algo revolucionário e por isso tão combatido por governos autoritários. Arte e cultura são armas poderosas que precisam ser liberadas. Escrever e publicar poesia é um ato de resistência e com isso espero poder contribuir para que mais pessoas acessem esse universo que nos tira um pouco da aridez desse momento e, ao mesmo tempo, nos coloca em contato com o que há de mais poderoso: a essência das coisas. Poesia tem a ver com estado de atenção, de envolvimento, de entrega. A gente quer saber de tudo, entender tudo, e esquece de sentir. Sentir é uma forma de saber.

Como tem sido o período pandêmico para você? Atualmente, que pensamentos atravessam? O que mais te trouxe desalento e o que te acendeu fagulhas de esperança?
Eu pude me isolar, continuei trabalhando, com segurança, à distância, e tive inclusive mais demanda de trabalho. Estive cercada de beleza e afeto, sem experimentar de forma tão dura o distanciamento social quanto as pessoas que passam por isso sozinhas. A certeza de que faço parte de um grupo muito privilegiado foi escancarada nesse período, não me sinto confortável em exaltar meus sofrimentos durante a pandemia. O mundo está cheio de muita dor, muita perda, muito desamparo. Eu estou bem e me movimentar em direção ao bem-estar do outro tem sido alento. Acredito que a tal transformação, o crescimento, a conscientização global a partir dessa experiência tão desafiadora vai acontecer, ou não, no campo pessoal. É de cada um. Uma grande vantagem é que as pessoas têm se mostrado, a gente agora sabe quem é quem. Tenho visto muitos movimentos bonitos de solidariedade e acredito que esse é um ganho que fica. O resto há de passar.

“Todo o Mar Vai ser Você” ganhou nova edição, certo? Queria que me falasse um pouco mais dele, já que ecoa um momento tão difícil em sua vida...
Sim, a segunda edição foi lançada pela Quixote-Do, em novembro do ano passado, na FLITI - Feira Literária de Tiradentes. Uma alegria imensa! O livro tem uma estrutura de diário e nasceu da minha necessidade de contar com a palavra, com a minha escrita, como forma de de elaborar o que eu não podia compartilhar com meu marido, que enfrentava um tratamento pesado contra um câncer, que descobrimos em estágio avançado. Sempre quis escrever um livro e quando isso aconteceu eu estava distraída vivendo a minha mais intensa jornada de vida. O que me levou a publicar foi o vislumbre de que a minha experiência poderia ajudar pessoas, inspirar e fazer parte de processos de cura, de alguma forma. Vi nessa troca o sentido de tornar pública minha escrita, que foi fundamental no meu próprio processo de elaboração. O que veio depois da publicação foi uma confirmação, através do que chamei de “Minha poesia voou - relatos de quem já mergulhou no meu mar”, de que essa experiência era realmente pra ser dividida. São relatos espontâneos de leitores, uma troca rara. Relatos muitas vezes de um olhar transformado a partir desse mergulho. 

Por último, gostaria que falasse da joalheria, ofício ao qual tem se dedicado...
Sim! A joalheria é minha mais nova paixão. Como todo o meu processo de criação esse é também muito intuitivo, sabe? Comecei a brincar de encontrar uma relação entre as pedras, o que acabou se tornando um conceito: o encontro entre pedras brutas e lapidadas, em composições únicas, como cada um de nós. A marca Completude foi lançada em dezembro de 2020 e já estamos na nossa terceira coleção, que foi criada em comemoração ao lançamento de "Acesa". E sabe que percebi uma relação entre a joalheria e a poesia? é que depois que escrevo, sempre deixo as palavras descansarem um tempo, até definir o que é mais bonito assim, bruto, e o que preciso lapidar.

A pedido do Magazine, Glaura selecionou alguns poemas para se deter sobre eles em particular

(os poemas não são titulados, no livro)

1) "espelho de rio
leva o olhar pra dentro
o igapó sou eu
pequena mas imprescindível
para que o universo seja
o que é hoje
e para que alguém possa
deslizar por mim
deixando seus rastros de espuma branca
sobre minha água
morna
mexida
o igapó é você
onde mergulho
e me vejo
reflexo no seu olhar
mundo rio igapó
lago igarapé
todos correndo
mansos
espelho na superfície
no fundo redemoinho
o igapó sou eu
com minhas sombras seivas
minha pele lisa navegável
e minhas profundezas habitadas
pelo desconhecido selvagem
o rio sou eu
recebendo todas de mim
caudalosa e potente
nesse frio quente
encontro com minhas águas"

Glaura Santos: "Este poema nasceu no rio Negro, durante uma viagem que mexeu muito comigo. Foi um mergulho não só naquela paisagem hipnotizante da floresta, mas nas minhas raízes amazônicas (a família da minha mãe é de lá). Foi um reencontro que me preencheu e que transbordou em poesia".

2)

não foi numa noite fria de inverno
luz baixa
vento soprando desafinado pela janela
desejo de um corpo pra esquentar
uma taça de vinho solitária em cima da mesa
não
foi numa terça-feira de manhã
a vizinha pondo o lixo pra fora
as crianças preenchendo o corredor
com sua relutância em ir pra escola
a sala cheia de sol
a faxineira pendurada na janela do prédio da frente
a vida acontecendo sem nenhum sinal
do paralelo que são nossos encontros
uma bagunça dentro do lado previsível da vida
um susto um sopro
um uivo lambida
lençóis molhados no final
nossos rastros nas paredes
na pia no tapete
é sempre madrugada
quando abro a porta pra você

Glaura Santos: "Este poema, eu escolhi também para o booktrailer, sinto que representa muito bem o livro. É um trabalho bem bonito, um encontro muito especial entre palavra e imagem que fiz com a Kivia Kruczynski.

3)

no verão
onde vai ser a piscina
o sol acaba às 16h30
na grama
dançam lindas as sombras
que logo vão se molhar
Gosto do caráter simples e imagético deste poema
é sobre criar pequenos mundos
habitar ilhas que já existiam
e as que vão se formar
deixar o deserto lá fora
esvaziar as ruas
preencher os vazios
e ouvir a música
que o seu silêncio te dá

Glaura Santos: "Um poema escrito durante o susto do início da pandemia"

 

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