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Clássico de Nelson Rodrigues, ‘A Falecida’ chega a BH para apresentação dupla

Montagem de Sergio Módena é protagonizada por Camila Morgado e Thelmo Fernandes

Por Alex Bessas
Publicado em 26 de abril de 2024 | 06:30
 
 
 
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O ato de falar sobre um velório suntuoso tem animado Camila Morgado. Não que a morte e os ritos fúnebres sejam, para ela, propriamente, uma zona de interesse. Mas o são para Zulmira, sua personagem no espetáculo “A Falecida”, clássico de Nelson Rodrigues (1912-1980) que chega a Belo Horizonte para duas apresentações únicas, neste sábado (27) e domingo (28), no Sesc Palladium.

Na montagem dirigida e idealizada por Sergio Módena, cenas do passado e do presente se misturam em uma troca de planos que ora tensiona e ora traz alívio cômico à saga da heroína trágica vivida por Camila, que divide protagonismo com Thelmo Fernandes, um veterano no universo rodrigueano – diferentemente do diretor e da atriz, que trabalham pela primeira vez com um texto do anjo pornográfico do teatro brasileiro.

“Me sinto muito feliz em trazer para palco um dramaturgo como o Nelson Rodrigues, nosso Shakespeare”, exalta Camila, para quem a peça, escrita em 1953, ainda soa atual. “Nelson é um retrato da nossa cultura e da nossa formação”, analisa.

A atriz conta que recebeu de Módena o convite para interpretar Zulmira. “Além de um grande amigo é um artista pelo qual eu tenho profunda admiração”, elogia. “Aceitei na hora, pois já conhecia o texto, adoro Nelson Rodrigues e também me entusiasmei com a ideia de parceria com meu amigo de longa data”, relata, sublinhando que esta é a primeira vez em que os dois trabalham juntos, embora se conheçam há mais de 20 anos – “o que torna tudo mais fácil, porque a intimidade deixa tudo ficar mais divertido”. “Temos muita confiança um no outro e nos conhecemos de verdade. Sergio é um excelente diretor, muito delicado e generoso com seus atores”, expõe ela, que, além de Thelmo, contracena com Stella Freitas, Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Thiago Marinho e Alan Ribeiro.

O espetáculo, aliás, marca o retorno da atriz ao teatro, após um hiato de 11 anos sem estar no palco. Mas Camila evita fazer deste marco um grande acontecimento. “Só percebi isto porque os jornalistas falaram. Na verdade, fui emendando um trabalho no outro e quando vi já havia passado todo esse tempo”, explica, sem dar muita importância ao detalhe.

Universo rodrigueano

Thelmo Fernandes detalha que, no texto de Nelson Rodrigues, publicado originalmente há mais de 70 anos, a morte aparece como um elemento de vingança, mas com sinais trocados: em vez de ir à desforra elucubrando o assassinato daqueles que a maldizem, a protagonista dedica-se obsessivamente a planejar os próprios ritos fúnebres, manifestando o desejo de ser sepultada em grande estilo. Uma fantasia permeada por motivos morais. De um lado, há a ideia do sacrifício diante da culpa por ter cometido um pecado capital, o adultério, de outro, há o ambíguo desejo de morrer para provar aos outros que ela e sua família, na verdade, estavam “bem de vida”.

Na montagem idealizada por Sergio Módena, toda a história se discorre em um grande mausoléu, entendido pelo cenógrafo André Cortez como um signo da ostentação social em meio aos mortos. Já os figurinos de Marcelo Olinto buscam evocar um tempo passado, mas indefinido, evitando se fiar a estilos datados de determinada década. A trilha sonora, por sua vez, é composta por Marcelo H, explorando o conflito entre o sagrado e o profano.

É com esta ambientação que Camila Morgado celebra a chance de revisitar o universo rodrigueano. “Primeiro, quero ressaltar a importância de sempre trazer este grande dramaturgo para a cena”, diz, tecendo loas a Rodrigues por ter revolucionado o teatro brasileiro e por “descrever tão bem estes seres do asfalto, a alma brasileira, o carioca”. “Nelson, nosso grande escritor, é popular e erudito ao mesmo tempo”, salienta. A atriz sustenta ainda que, na verdade, a sua personagem quer apenas ser escutada. “Ela vê no luxo do seu enterro uma forma de ter uma espécie de holofote sobre si, como se finalmente aparecesse a chance dela ser olhada, admirada e reverenciada. Uma forte simbologia sobre o apagamento do feminino”, reflete, sem deixar escapar, ainda, todo fundamentalismo religioso que caracteriza a personagem. 

Personagens afins

É um tanto curioso que Camila Morgado venha interpretando, a um só tempo, duas personagens marcadas por um forte viés religioso. Além de Zulmira, em A Falecida, ela defende Iolanda, a Dona Patroa da novela Renascer, em exibição no horário nobre, na TV Globo. Em comum, as duas expõem as incoerências de um conservadorismo muito apegado à própria imagem, temendo, constantemente, pelo que os outros pensam sobre si ou sobre o seu casamento.

Mas, para além dessas características afins, um tanto mais óbvias, a atriz defende que há outros pontos de interseção entre as personagens. “Iolanda, que é a Dona Patroa, e a Zulmira, de A Falecida, estão falando do mundo construído pelos homens e para os homens”, examina, dizendo que a última, uma heroína trágica, representa aquelas pessoas que não tem voz, que não são escutadas e são descartadas. “É através de um desejo incontrolável de organizar seu enterro, que ela passa a ter atenção e a ascensão devidas. Uma linda metáfora para o nosso tempo”, pontua. 

“Já Iolanda, que conhecemos só pelo nome de Dona Patroa – o que já nos dá o grau de submissão desta personagem – está sempre servindo seu marido, sua filha, sua família. Cuidando do seu lar com muito esmero e dedicação. Dona Patroa é um personagem que sofre violência doméstica, mas devido ao seu fervor religioso, acredita que isso acontece por estar orando menos pela salvação de seu marido”, examina. Ela lembra que, a partir dos próximos capítulos da novela, a personagem começa a refletir sobre os dogmas religiosos e a igualdade de gênero, passando a ter uma postura mais progressista.

Sobre conciliar as gravações e estar no palco. Camila diz viver “uma gincana”. “Mas é o meu ofício de atriz, né?”, pondera. “Agora que a peça já estreou e já fez temporada em São Paulo e Rio de Janeiro, fica mais fácil, porque ela já existe, já foi concebida. Quando chegarmos em BH, vamos ensaiar, mas é um ensaio de reconhecimento do palco, do teatro, de marcações e ajustes”, estabelece, sublinhando ser muito feliz com as duas personagens.

Expectativa

Antes de chegar à capital mineira, “A Falecida” já deu mostras de sua força em uma bem-sucedida série de apresentações. “Tivemos duas temporadas lotadas, o que é um privilégio enorme, pois sabemos que isso não é corriqueiro. O público adora, sai tocado do teatro, sempre espera para falar com a gente no final”, conta. Ela destaca que, além de receber o carinho do público, tem convivido também com elogios da crítica – “que tem falado muito bem do espetáculo”. A peça recebeu os prêmios FITA 2023 de Melhor Atriz Coadjuvante, para Stela Freitas, e Melhor Espetáculo pelo juri popular.

Não por outro motivo, a vinda a BH é carregada de expectativa. “Tenho certeza de que vou sair do teatro e pensar: ‘que pena que foram só duas!’”, brinca. “Estou muito feliz em poder viajar com a peça, em estar em Belo Horizonte, tenho muito carinho pela cidade e pelo público mineiro. Sei que os ingressos já estão praticamente esgotados e a única coisa que espero é que esse encontro seja único e especial”, garante.

SERVIÇO
O quê.
Espetáculo ‘A Falecida’
Quando. Neste sábado (27), às 21h, e domingo (28), às 19h 
Onde. Grande Teatro do Sesc Palladium (r. Rio de Janeiro, 1046, Centro)
Quanto. A partir de R$ 19,80 (ingressos populares, meia entrada) até R$ 90 (Plateia I, inteira)

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