O TEMPO DADOS

Negros são maioria entre os candidatos pela primeira vez em Minas

Por outro lado, concorrentes brancos dominam disputa pelas prefeituras

Por Cristiano Martins*
Publicado em 10 de outubro de 2020 | 07:00
 
 
 
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*Com colaboração de Thaís Mota

 

O número de candidatos negros supera o total de concorrentes brancos nestas Eleições 2020 em Minas Gerais. É a primeira vez que isso acontece desde que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a coletar a autodeclaração de raça e cor, em 2014.

De acordo com a análise realizada por O TEMPO, foram apresentadas 41.111 candidaturas de pessoas identificadas como pardas ou pretas, o que significa 50,9% do total no Estado. A soma dos dois conjuntos representa o conceito de população negra, na definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os brancos, por sua vez, respondem por 37.820 registros (46,8%), enquanto os postulantes amarelos ou indígenas são ao todo 328 (0,4%). O restante dos formulários não foi preenchido (1,8%).

A maioria negra é atingida num momento simbólico. Neste ano, entra em cena a inédita cota de distribuição proporcional do fundo eleitoral e dos tempos de propaganda gratuita, aprovada recentemente no TSE e no STF (Supremo Tribunal Federal).

“Se dependermos da maioria para defender a minoria, teremos a manutenção do status quo. É preciso empurrar a história, avançar”, declarou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, ao anunciar a medida no último dia 23 de setembro. A aprovação se deu sob resistência da maioria dos líderes partidários, diante do prazo curto para aplicação da norma.

Na avaliação do cientista político Cristiano Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a nova cota não contribuiu diretamente para o aumento das candidaturas negras, justamente por ter sido aprovada às vésperas do início da campanha. A influência sobre os resultados também deverá ser pequena.

“Por conta da rapidez com que isso foi feito, da falta de coordenação política em torno dessa decisão e do fato de estarmos em um momento eleitoral atípico, mais curto e mais virtual em função da pandemia”, resume o especialista.

 

 

Representação

Segundo o IBGE, 53,5% dos habitantes de Minas Gerais são negros, e 45,4%, brancos. Os números mostram que a presença no pleito em 2020 está mais próxima da proporção observada no conjunto da população, mas ainda existe uma sub-representação.

A diferença fica ainda maior se analisados separadamente os cargos em disputa. Os brancos são a maioria entre os candidatos a prefeito (64%) e a vice (60,3%). A proporção de negros concorrendo a vereador (52%) e a maior oferta de vagas no Legislativo ajudam a diluir a média no Estado, já que são ao todo mais de 75 mil postulantes às Câmaras, contra pouco mais de 2,7 mil chapas majoritárias para os Executivos municipais.

Os resultados do pleito de 2016 também revelam uma disparidade quando se trata de votos conquistados. Entre os prefeitos eleitos há quatro anos em Minas, 72,6% eram brancos e 26,9%, negros. A representação média nas Câmaras foi maior, com 58,8% e 40,7%, respectivamente.

Em Belo Horizonte, 11 dos 15 candidatos a prefeito neste ano são brancos. Áurea Carolina (PSOL) e João Vítor Xavier (Cidadania) se declaram pardos, e Wanderson Rocha (PSTU), preto. Alexandre Kalil (PSD) não informou cor ou raça no registro.

Para Áurea, a destinação proporcional de recursos é uma conquista da luta antirracista. “Temos uma sub-representação nos espaços de poder. Em BH, essa é a realidade. Não temos uma força de pessoas negras como seria necessário na Câmara, e nunca tivemos um prefeito negro ou uma prefeita negra. A gente corrige isso tendo uma participação da população de forma mais diversa na política institucional”, opina.

Xavier, por sua vez, valoriza a diversidade, desde que não haja preconceitos e todos possam contribuir com sua bagagem individual. “É muito importante, pois temos muitos pretos e pardos em toda a sociedade e é positivo que essa diversidade esteja representada. Mas numa linha em que não haja preconceito com ninguém. Todo cidadão traz a sua carga social, familiar, cultural e religiosa, e a construção política é exatamente isso, uma junção. De todos e sem distinção, do preto e do branco, do homem e da mulher”, avalia.

Rocha também vê o incentivo às candidaturas negras como algo positivo, mas com ponderações. “Pode ser a priori considerado um avanço, por possibilitar uma maior participação. Mas nem todos os candidatos negros representam o movimento ou as pautas das minorias e, sim, as ideias liberais. Por isso, nós defendemos uma abordagem de raça e de classe”, ressalta.

 

 

Partidos

A análise por partido mostra que a representação racial vai muito além dos debates ideológicos. Em termos proporcionais, PCO e Novo são as legendas com menos concorrentes negros, com zero e 19%, respectivamente. No outro extremo, quatro siglas apresentaram mais de dois terços de postulantes pardos ou pretos: UP (75%), PMB (70,9%), PCdoB (66,3%) e PSTU (64,3%).

Entre os partidos grandes (acima da média de 2,5 mil candidatos), a variação é significativamente menor. Os que possuem menos negros são o DEM (43,9%) e o PSDB (45,4%), enquanto os maiores índices estão no Podemos (58,2%) e no PT (57,4%).

O presidente estadual do DEM, senador Rodrigo Pacheco, ressalta o prazo curto dado às legendas para aplicarem a nova cota racial. “Ela é meritória, no sentido de tentar assegurar um processo eleitoral mais inclusivo e igualitário. A discussão que se seguiu foi sobre a mudança das regras na véspera da eleição, quando as candidaturas e composições já estavam planejadas dentro da atual realidade dos partidos”, observa.

Já o presidente do Novo em Minas, Ronnye Antunes, reprova a nova norma. “Analisar candidatos por qualquer tipo de cota é diminuir o debate e desrespeitar o indivíduo. Não significa que o Novo não reconheça as desigualdades, apenas não acreditamos que vamos resolvê-las assim. Estas leis apenas ajudam a reforçar diferenças”, opina.

Sobre o baixo número de negros no Novo, Antunes afirma que o partido se baseia em critérios técnicos para escolher seus representantes. “Todas as pessoas que quiseram participar do nosso projeto passaram por um processo seletivo, no qual se avaliou a capacidade e o alinhamento ideológico. Outros partidos acabam aceitando qualquer pessoa que não esteja preparada para um cargo público”, acrescenta.

Cabe destacar que, ao contrário do que acontece com a cota de participação feminina (30%), a nova regra não estabelece um percentual mínimo de candidaturas negras. O que ela determina é a distribuição proporcional dos recursos e tempos de propaganda entre os grupos raciais existentes dentro de cada legenda.

 

 

Análise

Segundo o cientista político Cristiano Rodrigues (UFMG), os estudos revelam que a presença de candidatos negros é historicamente maior nos pleitos municipais, especialmente na disputa pelas Câmaras, por haver menor competitividade. Pelo mesmo motivo, ela costuma estar mais concentrada nos municípios do interior.

“A competitividade eleitoral é o grande determinante. Os partidos escolhem e investem naqueles candidatos com mais chances reais. Há sempre mais candidatos negros para vereador, e normalmente esse número é mais parecido com a proporção populacional naquela região. Cidades menores vão ter mais negros porque é onde há menos competitividade e a politica é menos profissionalizada. Nas cidades maiores, o processo é mais complicado, e a competição cria barreiras”, explica.

Para o especialista, o crescente debate público sobre racismo estrutural, consciência racial e representatividade pode ter influenciado no aumento dessa proporção. Ele menciona o movimento estadounidense Black Lives Matter, com repercussões no Brasil, e o que chama de “efeito Marielle”, em referência ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL).

“De fato, a sociedade brasileira vive esse momento, que tem a ver com o período pré-eleitoral de 2018, em que se intensificou muito a discussão. E isso tem sido encaminhado para dois lados. Um lado negacionista, de que racismo não existe, representado no grupo atualmente no poder. E um contramovimento, uma parcela que tende a buscar o acesso à política institucional pela percepção de que esses canais podem estar se fechando e que, então, é preciso lutar por espaço, para garantir os direitos já construídos ou para impedir que haja retrocesso”, elabora Rodrigues.

O cientista político aponta que esse contramovimento tem encontrado espaço nos partidos pequenos e mais à esquerda, como PSOL, PCdoB e o recém-criado UP, devido à menor competitividade interna em relação às legendas grandes. Por outro lado, também houve aumento das candidaturas negras em siglas pequenas mais à direita do espectro, o que na avaliação dele seria um reflexo da maior aproximação entre este setor e as igrejas, com forte presença nas classes sociais mais pobres.

 

 

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