O TEMPO DADOS

Trans usam nome social pela primeira vez nas eleições municipais

Quem são e o que pensam as candidatas transgênero que tentarão vagas nas Câmaras em Minas Gerais

Por Cristiano Martins
Publicado em 02 de outubro de 2020 | 06:00
 
 
 
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Pela primeira vez na história, candidatos e candidatas transgênero poderão utilizar o nome social nas eleições para os cargos de vereador e prefeito no Brasil. Em Minas Gerais, 20 pessoas se cadastraram usando a nova identidade, todas elas na disputa para a função legislativa.

A análise dos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revela que 19 postulantes se identificam como mulheres e somente um como homem. A variedade de perfis, porém, é bastante ampla. As idades vão dos 21 aos 61 anos, e as candidaturas representam 13 partidos dos mais diversos campos políticos.

Neste aspecto, chama atenção o caso da cabeleireira Ariella Dutra, 28, candidata a vereadora em Belo Horizonte pelo Republicanos, ligado à Igreja Universal. Como ela mesma lembra, o grupo tem entre seus principais filiados o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, filhos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), todos com um posicionamento fortemente contrário à chamada ideologia de gênero.

“É o partido dos filhos do Bolsonaro, né? Quem conhece sabe. Por mais que haja preconceito e julgamento, precisava mesmo ter uma pessoa lá dentro para bater de frente e mostrar quem nós somos. Foi o partido que me convidou, e eles sabem dos meus ideais, então acredito que queiram se expandir mais, para a população ver que não é bem assim”, afirma Ariella.

A legenda com mais nomes sociais entre os registros para as Eleições 2020 em Minas é o PDT (três), seguido por Patriota, Progressistas, PSD, PSDB e Rede (dois cada). Avante, DEM, PCdoB, PT, PTB e PV completam a lista.

 

 

Assim como Ariella, todas as candidatas trans ouvidas pela reportagem tentarão se eleger pela primeira vez neste ano. A maioria afirma que a possibilidade de uso do nome social foi determinante para a tentativa de entrada na vida pública.

“Seria um constrangimento ter que usar o nome de registro, então eu nem ousaria me candidatar. Ia preferir ficar quietinha no meu canto. É um passo importante para grandes mudanças, abrindo portas e oportunidades para novas cabeças e novas propostas, para que as pessoas vejam que nós também somos capazes”, diz Rebeca Gonçalves, candidata da Rede em Juiz de Fora, Zona da Mata.

Na opinião da técnica de enfermagem Ranney Mendes (PSD), a visibilidade para a causa LGBT é um incentivo, mas traz também responsabilidade. “A questão do nome social representa a certeza de que aos poucos o nosso espaço como pessoas transgêneros, transexuais e travestis está sendo conquistado e respeitado. Quero ser a voz daqueles que não têm coragem de lutar por seus direitos em nossa cidade”, diz a candidata em Riacho dos Machados, Norte de Minas.

Já a enfermeira Aysla Carvalho, candidata pelo Progressistas em Campo Belo, no Sul do Estado, comemora a novidade na legislação, mas diz que disputaria o pleito mesmo se não pudesse optar pela identidade social.

“É muito bom não precisar passar pelo constrangimento de usar o nome de certidão. Foi uma grande vitória para nós, LGBTs. Mas, para mim, não era um requisito. Eu me apresentaria mesmo assim. Me candidatei para mostrar que uma mulher transexual tem capacidade de exercer qualquer cargo ou profissão que ela quiser, e que isso não tem nada a ver com identidade ou gênero”, comenta.

 

Outras prioridades

Por outro lado, várias entrevistadas fizeram questão de destacar que o tema não será necessariamente uma bandeira central nas campanhas. “É importante, sim, estar dentro da política para batalhar pelas nossas causas, mas não é só isso. Até mesmo para as pessoas verem que nós também queremos fazer o bem para todos”, declara Ariella Dutra.

A opinião é compartilhada pela comerciante Rhielly Gomes (PDT), postulante a uma vaga na Câmara Municipal de Itamarati de Minas, Zona da Mata. “As propostas têm que ser para todo mundo, e não apenas para a sua área. Estou concorrendo para representar a todos, sem exceção de gênero, orientação sexual, cor ou religião”, comenta.

Aysla Carvalho segue o mesmo raciocínio, mas admite um foco maior nos coletivos menos privilegiados. “São coisas diferentes. Eu quero lutar e honrar a minha classe, mas não me candidatei só para ela, e sim para a comunidade e todos aqueles que mais precisam, especialmente as minorias e os que não têm voz”, afirma.

As minorias também são prioridade para Rhauhanna Gonçalves (Patriota), concorrente em Dionísio, no Vale do Aço. “A importância da representatividade é fiscalizar e legislar principalmente pela minha comunidade que tanto é discriminada nesse meio. Mas também o empoderamento das mulheres, a promoção da igualdade racial, os direito dos jovens e a segurança pública cidadã em prol dos menos favorecidos”, detalha.

 

 

Mudança nos documentos está entre as pautas

Outras candidatas destacaram temas específicos que preocupam e mobilizam a comunidade LGBT. A própria burocracia para a mudança de identidade é uma dessas pautas.

Candidata pelo PDT em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, a professora Edna Ide conta que ainda não conseguiu atualizar todos os documentos pessoais desde a transição de gênero. Por isso mesmo, ela comemora o uso do nome social no registro eleitoral e defende um acesso mais barato e menos burocrático à nova identidade.

“Todas nos sentimos muito mais completas, é um direito e uma conquista. Essa permissão é extremamente importante. E ela será uma das minhas lutas, pois muitas mulheres trans ainda não efetivaram a troca e têm grandes dificuldades. Mesmo estando mais fácil hoje em dia e as taxas sendo poucas, muitas não têm condições de gastar até R$ 400 para regularizar tudo”, explica a professora.

A também professora Ana Luz (PT) reforça que ainda é difícil conseguir a mudança nos documentos. “Era um processo muito mais complicado, e depois melhorou. Mas os próprios cartórios têm dificuldade em acompanhar, e muitas vezes não realizam os procedimentos, porque é tudo muito recente”, relata a candidata em Uberaba, Triângulo Mineiro. Para ela, é função do poder público criar uma estrutura de apoio para as pessoas trans, especialmente nas áreas da saúde e do trabalho.

De maneira geral, todas as entrevistadas ressaltaram o uso do nome social como uma conquista importante. “Me sinto elogiada e respeitada pela sociedade, e só assim acabamos com o preconceito. Entrei na política para lutar contra ele”, resume Andressa Ferreira, candidata pelo Avante em Maravilhas, na região Central.

O TEMPO fez contato com todas as pessoas que se cadastraram com o nome social para as Eleições 2020 em Minas, mas nem todas quiseram ser ouvidas ou não responderam até o momento desta publicação.

 

Mudança na regra ainda confunde

 


Brenda Santunioni (Patriota), vereadora e candidata a prefeita em Viçosa
(Foto: Fernando Cézar/Divlugação)

 

Até mesmo para quem se beneficiou da mudança, a nova legislação ainda gera dúvidas. Rhielly Gomes, por exemplo, foi a única dentre todos os 20 postulantes a apresentar o nome de certidão, por falta de orientação.

“Ainda não tive a oportunidade de retificar todos os meus documentos, e só soube como fazer direito depois que o prazo já tinha acabado. Mas estou muito satisfeita com o respeito de todos e por poder utilizar meu nome social, que é o nome adequado ao meu gênero e ao meu estado civil de casada”, salienta.

O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MG) explica que o registro de candidatura deve necessariamente conter o nome civil ou o nome social, no caso das pessoas trans que assim optarem. Desde 2018, não é mais necessária a autorização judicial ou a comprovação da cirurgia de redesignação sexual para a obtenção desta nova identidade. O nome utilizado na campanha e na urna, no entanto, pode ser um apelido.

Nesta última opção, o pedido passará pela avaliação do juiz eleitoral. Estão proibidas referências a órgãos públicos (João da Copasa, por exemplo) e palavras que atentem ao pudor ou sejam desrespeitosas.

O uso do nome social no título de eleitor e nas candidaturas está autorizado desde 2018. Antes disso, apenas os candidatos trans que já tivessem realizado a mudança de sexo no registro civil, sob a antiga burocracia, podiam concorrer com uma nova identidade. 

É o caso, segundo o TRE, da vereadora Brenda Santunioni (Patriota), candidata neste ano à prefeitura de Viçosa, Zona da Mata. Por ter obtido o novo registro civil antes de 2016, ela não entra na conta do nome social e, portanto, não consta no levantamento. Antes da retificação nos documentos pessoais, ela chegou a disputar uma eleição com o antigo nome civil e o então "apelido" de Brenda na urna.

Após a mudança na lei, já haviam sido apresentadas três candidaturas com nomes sociais nas eleições gerais de 2018 em Minas. Todas elas foram pelo PSOL, sendo uma para senadora (Duda Salabert), uma para deputada federal (Leandra Du Art) e outra para estadual (Juhlia Santos). Nenhuma delas foi eleita.

 

Nome social cresce 34% entre o eleitorado

Desde 2018, a Justiça também aceita o nome social de transgêneros nos títulos de eleitor. O número de pessoas que optaram por votar com essa nova identificação aumentou 34% nesses dois anos em Minas Gerais: de 744 para 1.001.

Nestas Eleições 2020, elas estão distribuídas por ao todo 246 municípios mineiros. As cidades com mais eleitores registrados com a identidade alternativa são Belo Horizonte (117), Juiz de Fora (99), Uberlândia (96), Uberaba (54) e Montes Claros (25).

 

 

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