Quando Viviane Ramos descobriu o primeiro câncer, em 2015, ela tinha consciência da trajetória que enfrentaria até a cura, e venceu. Só não imaginava que ainda viriam vários outros tumores. Já são oito anos de tratamento e, entre quimioterapia, medicação, finanças e família, ela convive com uma constante preocupação, que não era para estar nessa lista: o transporte. Histórias como a dela são tema da série de podcasts que a Mais Conteúdo, de O TEMPO, inicia nesta terça-feira (1), em quatro episódios.
Ouça aqui primeiro episódio
“É uma dor de cabeça danada. A gente tem que levantar e falar assim: amanhã eu tenho médico, como eu vou?”, relata Viviane. Até então, Belo Horizonte não tem uma política pública que garanta o deslocamento dos pacientes oncológicos de casa para as consultas. E, para muita gente, a falta da garantia desse acesso significa deixar de ir ao tratamento.
Segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia da Regional Minas Gerais, Annamaria Massahud Rodrigues,uma em cada três pessoas que não comparecem a uma consulta médica deixam de ir por não conseguirem transporte. “De acordo com dados da Santa Casa, do ano de 2019, para um terço das pessoas que faltam o problema foi exatamente não ter condições de deslocamento”, explica.
Annamaria, que é mastologista na Santa Casa, ressalta que essa interrupção pode ter sérias consequências, como a redução de chance da cura. “Quando acontece de faltar à consulta, vai atrasando o tratamento. Para o paciente é uma catástrofe, pois uma pessoa que às vezes tem muita chance de ficar curada, não vai conseguir porque não fez o tratamento direito”, afirma a médica.
Paciente deixou de ir ao hospital
Viviane já deixou de ir ao hospital algumas vezes e sabe das implicações. “O risco de faltar ao tratamento é o da doença progredir”, diz . Ela mora no bairro Tupi, região Norte, e faz tratamento no Barro Preto, região Centro-Sul. Precisa pegar dois ônibus, mas às vezes pega só um, para economizar, e termina de chegar a pé. “Mensalmente, o gasto é entre R$ 600 e R$ 800. Uma situação muito complicada dentro do orçamento da gente, que é assalariado do INSS”, conta, lembrando que já teve vez de médicos pagarem para corrida de aplicativo para garantir que ela fosse.
Se ter dinheiro para um já é difícil, imagina para o acompanhante. Exatamente pela dificuldade financeira, Viviane e muitos pacientes vão sozinhos. “Quem me leva, na maioria das vezes, sou eu mesma. Eu que vou sozinha . Já aconteceu de passar mal e desmaiar no meio da praça Raul Soares. Quem me ajudou foi um morador de rua”, lembra Viviane, que depois do câncer de mama desenvolveu tumores na tireóide, no coração e nas coxas. Hoje, ela é uma paciente em tratamento paliativo e vai ao hospital de três a quatro vezes por semana.
Garantia de transporte gratuito
Na avaliação de Annamaria, a garantia do transporte gratuito para pacientes oncológicos é uma questão de política pública. No Brasil, não existe legislação específica para contemplar pacientes em tratamento de câncer com o direito ao transporte público gratuito.
Na esfera federal, já existe um projeto de lei, de 2020, de autoria de Alexandre Frota, que na época era deputado. A proposta era criar um Serviço Especial Gratuito de Transporte porta a porta, de todos os pacientes de doenças crônicas graves em todo o país. O projeto está lá, mas como não tem relator, ele não está sendo debatido.
Situação em Minas e BH
Em Minas Gerais, uma proposta de transporte público gratuito que inclui acompanhante foi recentemente desarquivada a pedido da deputada estadual Alessandra Portela (PL). “A ideia surge através de uma demanda de projeto de minha mãe, a vereadora Marilda Portela, que prevê a gratuidade do transporte coletivo no município. E esses passageiros não podem andar sozinhos. Então tem que arcar também com o acompanhante. Porque não é só garantir o direito, mas o acesso ao direito à saúde, sabendo que o transporte é garantido na nossa Constituição, lá no artigo 6º, como um direito social”, afirma a deputada.
Já em Belo Horizonte, um projeto de lei chegou a ser aprovado em 2017 upela Câmara dos Vereadores da capital mineira para garantir o transporte gratuito de pacientes em tratamento contra o câncer na rede SUS. Mas o então prefeito Alexandre Kalil vetou o texto, o que impediu que o benefício fosse implementado
Decreto publicado em julho deste ano, do subsídio do transporte público que viabilizou a redução da passagem em BH para R$ 4,50, inclui gratuidades para pacientes em tratamento de câncer. Mas, segundo o presidente da Câmara, vereador Gabriel Azevedo, não há um prazo para regulamentação. Isso levou o parlamentar a acionar a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.
A Prefeitura de Belo Horizonte alegou que ainda não há previsão para implantação da gratuidade.
Quem me leva
A história da Geralda Carvalho e o drama de outros pacientes com dificuldade de acesso ao tratamento pela falta de transporte gratuito você acompanha na série de podcast “Quem me leva”. Amanhã, será divulgado o quarto episódio desta temporada.
(Episódio 1) Quem me leva: falta de transporte impacta tratamentos de saúde
No primeiro episódio da série "Quem me Leva?", um dado estatístico que impressiona e preocupa: um em cada três pacientes em tratamento contra o câncer deixa de ir às consultas por não conseguirem transporte. É o que alerta a presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia da Regional Minas Gerais, Annamaria Massahud Rodrigues, que enfatiza ainda que a situação pode até reduzir as chances de cura. Histórias como da Viviane Ramos, que há oito anos luta contra a doença e sofre com a falta de um transporte gratuito.
(Episódio 2) Quem me leva: um direito assegurado pela Constituição
Só em 2015 que o acesso ao transporte passou a ser considerado um direito social previsto na Constituição. No segundo episódio da série "Quem me Leva?", o presidente da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU), Francisco Christovam, explica mais sobre essas garantias previstas na legislação - algo que se fosse cumprido à risca pelas políticas públicas, teria tornado menos desafiador o tratamento de pessoas como a Rosimiria Brandão, 60, que foi diagnosticada com câncer de mama. E quem a acompanhava durante todo esse processo de idas e vindas a hospitais era o filho, que à época tinha apenas 9 anos de idade.
(Episódio 3) Quem me leva: desafios de sair do interior para tratar em BH
No terceiro episódio da série "Quem me Leva?", falamos dos problemas enfrentados por quem vem sai do interior para fazer tratamento em Belo Horizonte. De um lado, o desafio dos pacientes; de outro, o desafio de quem os carrega. Geralda Carvalho de Souza, 48, mora em Ipatinga e se desloca semanalmente para Belo Horizonte para tratar um câncer. Uma distância de 300 quilômetros. No caminho, ficaram gastos além do que ela podia pagar e muitas dívidas.
O desconforto e as longas esperas dentro de carros parados na rua não são problemas vividos somente pelos pacientes. O motorista José Geraldo Correia, 51, de Maravilhas, na região Central de Minas, também reclama da falta de estrutura, como vaga para estacionar, banheiros e local para descanso.
(Episódio 4) Quem me leva: quanto mais perto, mais difícil
Para quem vive a menos de 50 km da unidade de saúde em que faz tratamento, a legislação não traz nenhuma obrigatoriedade de transporte gratuito. Essa é uma situação que traz dificuldades e transtornos para quem vive em regiões metropolitanas ou capitais como Belo Horizonte, principalmente para a população em situação de vulnerabilidade. No quarto episódio, histórias como da Rejane Silva, de 49 anos, que precisava percorrer um trajeto de menos de 20 km para fazer o tratamento no Hospital Luxemburgo. Muito debilitada, ela chegou a voltar parte do percurso a pé durante a quimioterapia.