Representatividade

Fim de cem anos de exclusão na Igreja

Percebam que a segregação não vem da religião, e sim dos religiosos. Aliás, um parênteses bastante importante, de alguns religiosos

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 18 de agosto de 2023 | 03:00
 
 
 
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Depois de cem anos de exclusão, a Igreja Católica abriu as portas oficialmente para grupos de congado. Em agosto de 1923, o bispo da diocese da capital, dom Cabral, assinou um documento que proibia a manifestação religiosa afro-brasileira nas igrejas. Apesar de alguns padres não seguirem mais a regra, ela sempre esteve ali dando embasamento e justificativas para os religiosos que optavam por barrar o sincretismo religioso nas instituições em que atuam. E só agora o arcebispo metropolitano, dom Walmor Oliveira de Azevedo, revogou a proibição, atendendo a um pedido que foi feito até para o papa em carta enviada por representantes da manifestação cultural. 

Esta é a história, e muita gente deve ter lido sobre ela ao longo da semana. Agora, naquele exercício de empatia que a gente tenta fazer aqui, nesta coluna, vamos dar um passo adiante. Por qual motivo uma instituição religiosa iria proibir um grupo de entrar na igreja e reverenciar Nossa Senhora do Rosário? Em qual parte da Bíblia está escrito que os santos aceitam oração desde que não sejam de pessoas com tais características? O que fizemos com o amar o próximo orientado pelo Deus cultuado no cristianismo? Percebam que a segregação não vem da religião, e sim dos religiosos. Aliás, um parênteses bastante importante, de alguns religiosos. 

Eu não sei em qual grupo você, caro leitor, se encaixa (entre os que defendem a entrada de grupos de congado nas igrejas ou não) nem sua religião. Mas, se chegou até aqui, acho relevante dizer que isso não é sobre questionar a fé de ninguém. Não me interessa saber a crença de cada um. Nosso papo aqui é mais sobre aceitar o próximo, algo que todas as religiões pregam e que as regras sociais nos impõem. Agora que já entendemos que não busco aqui atacar ninguém diretamente, apenas problematizar uma questão macro, vamos para o próximo passo: o da contextualização histórica do movimento. 

O congado chegou ao Brasil com os africanos escravizados. Com o passar do tempo, se tornou uma manifestação cultural amplamente conhecida, com grupos espalhados por várias regiões de Minas. Cada grupo de congadeiros tem uma bandeira-guia, com o desenho de Nossa Senhora do Rosário, vista como protetora dos negros. 

Dentro dessa contextualização, é importante ainda lembrar que a proibição do congado em Belo Horizonte não foi um caso isolado. Antes da criação da nova capital, quando a cidade ainda era chamada de Curral del Rey, parte do que existia foi destruída por não se “encaixar” no projeto de BH. Foi aí que a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que ficava nas proximidades de onde hoje se localizam as ruas da Bahia, Aimorés e Espírito Santo e a avenida Álvares Cabral, foi destruída. Foi mais um episódio de tentativa de apagamento da cultura negra na cidade. Isso sem contar com os corpos de pessoas pretas enterrados no local que foram concretados e esquecidos por lá quando os tratores chegaram para construir a capital-modelo para pessoas brancas. Em um segundo momento, foi construída uma capela, na esquina da avenida Amazonas com as ruas São Paulo e Tamoios, para cultuar Nossa Senhora do Rosário. Porém, com a proibição da manifestação dos congadeiros, os fiéis foram “expulsos” do templo que seria voltado para eles. 

E é depois desse pequeno resumo da história que eu volto a perguntar a você que chegou até este ponto do texto: o que seriam esses movimentos de segregação senão uma manifestação nítida de racismo religioso? Naquela capital jovem, com resquício de uma recente escravidão, eram mais comuns e menos questionadas as ações preconceituosas. Porém, a regra ter sido oficialmente retirada apenas em 2023 diz muito sobre a importância dada a um grupo que, apesar das dificuldades, resiste para viver a sua crença. 

Os congadeiros querem apenas viver livremente sua fé, entrar nas igrejas, rezar e sair abençoados. Deveriam eles agora, cem anos depois, ficar gratos? Ou deveriam simplesmente pensar que a Igreja não fez mais do que sua obrigação enquanto espaço de acolhida e devoção? Se eles não disseram, eu digo por eles: antes tarde do que nunca.

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