Representatividade

Licença poética para ofender

Tem noção do quanto pode ser exaustivo ter tratamentos diferenciados em vários contextos e ter que escolher entre fingir normalidade ou se indispor repetidas vezes?

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 27 de outubro de 2023 | 08:55
 
 
 
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"Passa rápido”. Essa foi a fala que eu tive que ouvir em uma revista de rotina na entrada de um estádio de futebol nesta semana. A frase assim, seca, sem contextualização, parece não ser nada. Mas vamos pensar juntos algumas questões. Eu não estava sozinha. As minhas companhias foram recepcionadas com “Boa tarde”, “Se vire por favor”, “Com licença” e uma revista profissional. Na sequência, ouviram um “Bom jogo”. Na minha vez, ouvi um “Vira logo”, tomei uns tapas pelo corpo e fui liberada com o “Passa rápido” que acabei de citar. 

No calor do momento, eu entendi que era por haver uma fila grande e eu poderia estar atrasando o processo. Mas, quando olhei para trás, tinha um total de zero pessoas na fila. Sim, eu cheguei cedo porque estava com criança e queria que minha filha curtisse todo o clima pré-jogo. E o mais complicado de tudo é que eu não senti que estava sendo desrespeitada.

Outra pessoa teve que me falar: “Tati, falaram com você no mesmo tom que eu falo com um cachorro”. Coincidência ou não, o que me difere das demais pessoas envolvidas nessa história é APENAS (em caixa alta mesmo, para marcar a importância do que estou contando) a cor da pele. Não rendi assunto e segui para assistir à partida de futebol. Afinal, se eu destruísse meu dia por causa disso, eu perderia duas vezes: pela humilhação e pelo desgaste. E estava no estádio para vencer.

Depois, refletindo sobre o assunto, concluí mais do mesmo. Fui vítima de racismo estrutural. Aquela mulher que me tratou dessa forma certamente entende que pessoas negras são uma ameaça. Ela deve atravessar a rua quando encontra um negro de boné passando na mesma calçada. E isso não necessariamente acontece de forma proposital. Aliás, na maior parte das vezes, não é. Ela pode, inclusive, não ser uma pessoa que se considera racista.

Então, esse preconceito, que também podemos chamar de “viés inconsciente”, age como uma justificativa para que tudo possa ser dito ou feito. Mas aí eu volto com uma questão que, talvez, quem não passe por situações assim não tenha a menor noção: será quantos “passa rápido” eu preciso ouvir em função de “gatilhos” para preconceitos de pessoas que eu nem sequer conheço? Estou colocando em primeira pessoa, mas falo em nome de todos que passam pelo mesmo. Se lembrarmos que mais da metade da população brasileira é negra, eu estou falando de um grupo enorme que precisa escolher entre se indispor na entrada do estádio ou engolir a desfeita simplesmente por ter nascido como nasceu.

Agora, pense que o estádio de futebol pode ser qualquer lugar. Tem noção do quanto pode ser exaustivo ter tratamentos diferenciados em vários contextos e ter que escolher entre fingir normalidade ou se indispor repetidas vezes? Eu tenho. E está aí um conhecimento que eu não me orgulho nem uma linha de ter acumulado. Como especialista de diversidade nas empresas, eu tenho feito palestras sobre isso de tão letrada no assunto. A questão é essa, está posta. Agora, cabe a nós refletir sobre como vamos agir com a informação em mãos. Eu assumi essa postura de tentar abrir os olhos das outras pessoas, mesmo que isso me custe rótulos que não me cabem. E você? Vai continuar deixando seus preconceitos serem ativados ou vai tentar revisitar suas ações e as das pessoas ao redor para ser um aliado na busca pelo respeito mútuo? A escolha parece fácil.

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