PAULO NAVARRO

A Língua do Movimento

Entrevista com Graziela Andrade

Por Paulo Navarro
Publicado em 09 de outubro de 2023 | 03:00
 
 
 
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Graziela Andrade é multiartista e professora da Escola de Dança da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isso é muito, mas no caso de Graziela, muito é muito pouco. Ela quer todas as abordagens oferecidas pela dança e pelas outras artes como a música, o teatro e as artes plásticas. “Elas se atravessam, afinal, dizem respeito às nossas experiências no mundo e como as revelamos”. Atravessam e interagem ainda com as tecnologias contemporâneas e os espaços urbanos. Outras travessias? Claro, e uma das mais importantes, a dança para pessoas “em situação de deficiência”, não como um tratamento, mas um lugar de experiência. Bom, chega de ensaiar, vamos para o palco. Com vocês, Graziela Andrade, o Spiral Praxis Brasil e seu criador, o nipo-canadense Yuji Oka, físico, bailarino e fundador do Spiral Movement Center, em Toronto, Canadá. Dança é espetáculo e plateia!

Graziela, a dança é uma linguagem?
A dança é uma linguagem artística ampla e podemos nos apropriar dela de diversas maneiras. A mais conhecida é a dança enquanto espetáculo, entretanto, há inúmeras outras abordagens como o campo da educação. O ensino de dança, música, teatro e artes plásticas é obrigatório na educação básica (Lei 13.278/16). O ensino da arte conta com quatro disciplinas distintas, demandando professores especialistas. Infelizmente os desafios para a implementação dessa lei são gigantes e acredito que um deles é o fato da imagem da dança ainda ser muito restrita, popularmente.

Linguagem que rima ainda com artes plásticas e literatura infantil?
Elas se atravessam, afinal dizem respeito a nossas experiências no mundo e como a revelamos. Minha inserção na literatura infantil veio da experiência materna, havia histórias incríveis que eu vivia com minha filha mais velha e que tive muita vontade de compartilhar. Com as artes plásticas foi bem diferente. Acho que canalizei uma energia traumática e ela encontrou passagem nas telas. Meu marido, Carlos Trovão, me chamou para desenhar com ele. Fiz trabalhos enormes, telas vermelhas, feridas. Até chegar a um azul lindo, floresceram as cerejeiras na casa, durante a pandemia. Depois não pintei mais. Não sei se um dia voltarei.

Outra rima: as relações dos corpos com as tecnologias contemporâneas e espaços urbanos. Como funciona?
Foram minhas pesquisas de mestrado e doutorado, a dança como um campo de conhecimento amplo e pouco conhecido. Pesquisei por mais de dez anos as relações do corpo com as tecnologias digitais. Alunos, artistas convidados, colegas professores e eu, tivemos a chance de experimentar vários dispositivos e isso gerou algumas criações. Usei o conceito de “Corpografias em Dança” no doutorado que realizei entre BH e Paris. Pensei a dança de um modo político. Convidei bailarinos da América do Sul e Europa para dançar em espaços públicos de suas cidades e registrar vídeos. Houve vários desdobramentos, inclusive uma instalação virtual em que o visitante, usando óculos de realidade aumentada, se deslocava por uma Belo Horizonte “inventada” e, por ela, encontrava nossos bailarinos. Juntamos alunos e professores de dança, cinema de animação e artes digitais. Foi um barato!

Adentremos finalmente o tema: dança para pessoas com deficiência. É um tratamento?
Eu não chamaria de tratamento, mas um lugar de experiência. A dança cria e explora outros estados corporais. O movimento da dança pode nos conectar com as pessoas, inclusive pessoas com deficiência. Em uma aula, pode-se criar um ambiente de confiança, um espaço lúdico, propor pequenos desafios, por exemplo, com pessoas autistas. Tive a oportunidade de dar aulas para um grupo de adolescentes com e sem deficiências e lembro-me de um dia em que a tutora de um dos alunos com autismo precisou sair da sala e ele, imediatamente, me deu as mãos. Ele havia me escolhido e esse "simples" ato denotava uma relação de confiança que tínhamos estabelecido, isso me deixou muito contente. As aulas de dança são formidáveis, onde aquilo que não é dito se revela através do movimento. Precisamos trabalhar nossa escuta, presença e sensibilidade e tudo acontece.

O que é o Spiral Praxis Brasil? Até dia 13?
Um método de educação somática. Existem vários pelo mundo e o que eles têm em comum é essa ideia do corpo SOMA, consideram o corpo-mente como um único ser. Os aspectos sensoriais, cognitivos, motores e afetivos de um sujeito, são tomados como um único e complexo sistema. Na dança experimentamos muitos desses métodos. O Spiral Praxis foi criado por um bailarino que também é físico e estava interessado em aprimorar sua própria performance na dança. O principal conceito do método é o “flow”, fluxo, fluência. Algo comum entre corpos, matérias e espaços. Na concepção do Spiral Praxis, se você tem uma dor em certo ponto do corpo, isso significa que o fluxo está sendo quebrado ali. Neste caso, há algumas condutas que podem ser seguidas, dependendo da lesão ou dor. Desde massagens, toques profundos, manipulações até uma condução oral, como uma meditação, podendo aliviar a dor.

A técnica canadense foi criada pelo nipo-canadense Yuji Oka. E ele está em BH. Quem é?
O Yuji Oka é físico, bailarino e fundador do Spiral Movement Center, em Toronto. Os pais dele são japoneses que imigraram para os Estados Unidos e, por isso, há bastante influência da cultura oriental no trabalho dele. Nos workshops em Belo Horizonte ele conta que foi uma mudança radical, ter encontrado a dança moderna, enquanto estudava física. Como se tivesse encontrado o restante de seu corpo e não só a cabeça com que tanto trabalhava. No início de sua pesquisa ele estava trabalhando para aprimorar sua dança, depois foi convidado a desenvolver um protocolo de desenvolvimento motor e, por fim, pela insistência de uma mãe que tem um filho com paralisia cerebral, ele começou uma abordagem genuína com pessoas com deficiências. Mas, para além de todos os estudos e conhecimentos técnicos, é possível ver em Yuji uma enorme empatia em relação ao outro.

E em Belo Horizonte?
Ele tem viajado muito para países diferentes, chegou a BH depois de uma temporada na Índia, onde tratou várias crianças e adultos. A vinda dele a BH é fruto de um projeto de pesquisa apoiado pela FAPEMIG. A ideia central era justamente trazer o Spiral Praxis para o Brasil e dar acesso a todas as pessoas que possam se interessar pelo método. Ele cumpre uma agenda longa por aqui e depois seguiremos para Brasília. Estrearemos nesta semana um documentário que conta a história de como o conheci e como tem sido o tratamento de minha filha Helena com ele.

O que ele agregou e vai deixar?
Essa é uma questão bastante pessoal, afinal as experiências são únicas. Posso dizer que meu olhar para a deficiência tem se transformado com esse encontro e que tenho o coração apaziguado em relação às possibilidades de desenvolvimento da minha filha. Aprendi a reduzir minha ansiedade e as expectativas e acredito que isso apresenta a ela um espaço de crescimento, sem as inúmeras cobranças que o dia a dia de uma criança com paralisia cerebral enfrenta. Nas sessões com Yuji ela se diverte muito e isso é fundamental para o aprendizado. Se não houver engajamento, ela não vai nem tentar. Na formação que tenho feito com ele, muitas vezes ele nos coloca desafios e estados corporais difíceis de lidar e, com isso, podemos, minimamente, entender o que estamos exigindo do outro. É de novo uma questão de empatia. Como disse, as experiências são singulares, alguns têm mais ou menos sensibilidade e entrega para o trabalho, mas tem sido muito gratificante a forma como ele está sendo recebido em nossa cidade.

Quem é o público alvo e quais os resultados até agora?
Qualquer pessoa pode se beneficiar do método. Seja para a melhoria de performance atlética, ampliação da consciência, tratamento de algum trauma, dor ou aquisição motora. Os resultados certamente serão variados, mas tem envolvido redução ou cura da dor; ganhos de consciência, mobilidade, habilidades motoras. No caso das crianças, muitas vezes o Yuji envolve toda a família no tratamento. Ele tem visto algumas mães, crianças em BH e ensina ações simples para trabalharem juntas em casa.

As "explosões de consciência" vão ficar?
São epifanias, acontecimentos que geram um conhecimento a respeito de algo. Pode ser uma abertura de consciência para algum ponto do corpo, por exemplo. O reconhecimento de um membro que até então não se movia. Sim, elas ficam, porque elas geram o real aprendizado. 

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