Quem circula pelos corredores do segundo pavimento da Galeria São Vicente, no entorno da praça Raul Soares, desfruta de uma vista panorâmica da região, especialmente charmosa no cair da tarde, uma porção de bares descolados e até uma pequena editora independente, a Polvilho Edições, cuja presença naquele circuito costuma causar surpresa.

“Muita gente não entende nada”, reconhece Ana Rocha, artista paulista à frente do empreendimento, inteirando que se diverte com o nó que a presença da loja causa na cabeça das pessoas, que, claro, recebe com muita disposição, sempre pronta a explicar a proposta do lugar.

“Tem pouco mais de um ano que vim para cá. Foi em junho do ano passado. Vim com uma operação bem enxuta, só com as minhas coisas mesmo, seja os produtos da Polvilho, seja os além-editoriais, como as cerâmicas e bordados que produzo, ou os discos da Rocinante”, menciona, fazendo menção à gravadora e fábrica de discos de vinil, fundada em 2018, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, que, em sua produção, privilegia a música independente, incluindo aquela com uma verve mais experimental. Outra característica do selo é o cuidado estético com o acabamento dos seus LPs, cujas capas têm projeto gráfico assinado justamente por Ana Rocha.

A fachada da Polvilho, na galeria São Vicente, no entorno da praça Raul Soares | Crédito: Fred Magno/O Tempo
A fachada da Polvilho, na galeria São Vicente, no entorno da praça Raul Soares | Crédito: Fred Magno/O Tempo

“Às vezes eu nem acredito que faço essas capas. Eu particularmente adoro disco, tanto que tenho um tocador de vinil desde os meus 17 anos. Mas confesso que nunca nem imaginei que eu ia até a chance de fazer trabalhar com esse mercado e com artistas tão interessantes. Eu gosto muito desse desafio de diagramar, de fazer caber, de maneira harmônica, todas as informações essenciais”, celebra. 

A descoberta de uma vocação

Muito antes de suas realizações com a Polvilho ou com a Rocinante, Ana Rocha já se interessava pelo fazer artístico. Um interesse que está tão colado em sua história que ela sequer saberia precisar quando se deu esse despertar.

“Nasci em São Paulo capital, mas ainda muito novinha me mudei para Porto Feliz, no interior do Estado, onde cresci. Meus pais criavam gado de leite, então a gente vivia bem isolados mesmo, o que não representou nenhum obstáculo para que eu gostasse desde sempre de objetos artísticos. Ainda na infância, eu pintava, fazia coisas com argila, desenhava… Mesmo sem ter nenhum parente, alguém próximo que fosse uma referência, já era uma coisa minha”, comenta.

Naturalmente, optou por estudar artes na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, onde se graduou há 15 anos. Foi durante o curso que ela entrou em contato com o que foi, para si, a descoberta de uma vocação: os livros de artista, que se tornaram a especialidade da Polvilho. “Era um tipo de produção que eu não conhecia, que nunca tinha ouvido falar. E aquilo me encantou e me levou a pesquisar e produzir esse tipo de trabalho”, recorda, mencionando recorrer a técnicas mais artesanais de impressão, como a xilogravura.

Ana Rocha na Polvilho Edições | Crédito: Fred Magno/Divulgação
Ana Rocha na Polvilho Edições | Crédito: Fred Magno/Divulgação

Com esse interesse como guia, ela naturalmente foi trilhando um caminho outro, diferente daquele que seus colegas trilhavam. “Em vez de expor trabalhos na parede, como quase todos meus contemporâneos da faculdade, eu fui guardando todas essas gravuras em grandes caixas, que são livros também, de certa maneira. Naquele momento, se consolidava em mim o desejo de trabalhar com esse tipo produção”, comenta.

A chegada a BH e o nascimento da Polvilho

Em 2009, após se formar, Ana Rocha mudou-se para Belo Horizonte. Três anos depois, nascia a Polvilho Edições, uma editora que surgiu a reboque da publicação de um primeiro livro. “Já que estávamos com a mão na massa, pensamos que valia à pena criar um selo e uma editora”, brinca, detalhando que, à época, ela tinha um sócio, o Caio, que era seu companheiro. “Ele escrevia poesias em uns cadernos horrorosos, aqueles com fotos de jogadores de basquete na capa e, daí, eu sugeri de usar outro suporte: um livro de artista”, relembra. 

“A gente começou a fazer algumas coisinhas juntos. Eu fazia uns caderninhos para ele, com papéis diferentes. Começamos a pensar em algumas experimentações até que, um dia, decidimos levar a brincadeira a sério”, prossegue, indicando que surge nesse momento o livro “Camarão que dorme”, que reunia poemas do autor sob o projeto gráfico e ilustrações da artista. 

Essa primeira aventura, conta Ana Rocha, representou um movimento de desbravamento da técnica. “Foi uma coisa bem artesanal mesmo. Tipo, eu literalmente pesquisei no Google: ‘como fazer um livro’. Até porque eu não sabia mexer nos programas, já que, na faculdade de artes, a gente não vê muita coisa sobre esses programas de edição. Então, aprendi na prática mesmo, vendo as máquinas operarem”, detalha, antes de arrematar que foi assim que ela começou a fazer produção gráfica – “uma coisa que eu gosto muito até hoje”. 

Uma editora caseira

Em boa medida, a Polvilho preserva um quê de uma editora caseira. “Até hoje, embora eu tenha a loja aqui na Galeria São Vicente, boa parte do meu estoque fica em casa”, aponta.

Capas de vinis da Rocinante, a maioria com projeto gráfico de Ana Rocha, ficam em exposição na loja
Capas de vinis da Rocinante, a maioria com projeto gráfico de Ana Rocha, ficam em exposição na loja | Crédito: Fred Magno

Ana Rocha trabalhou com o ex-companheiro e ex-sócio até o terceiro livro que eles publicaram juntos, a primeira edição do livro “Jardim do Seu Neca”, que venceu o prêmio Miolo(s) de 2015 na categoria Livro de Artista. “Os dois primeiros tinham textos dele, enquanto ilustração e projeto gráficos eram meus. Neste último, eu assumi a pesquisa, escrevi, fiz tudo”, relata. 

Após a publicação, com a sociedade desfeita, ela seguiu trabalhando sozinha. “Eu nunca tive nenhum maquinário, então sempre tive que ir a gráficas e, em casa, fazer os acabamentos miúdos, alguns relevos, coisas assim”, comenta. Em 2018, ela levou a Polvilho para o Mercado Novo. “Ter um espaço físico era um sonho antigo. Nele, queria vender tanto coisas minhas como trabalhos independentes de outras pessoas”, reconhece, ponderando que este não, propriamente, um sonho simples: “É difícil manter um negócio pequeno, arcar com aluguel e toda burocracia que um empreendimento assim envolve”. 

Hoje, a Polvilho é conhecida como a editora das “famílias gráficas”. “Sempre que lanço um livro, crio uma série de desdobramentos a partir dele, como cartazes e carimbos. Enfim, o próprio conteúdo das publicações vai me dando ideias do que posso desdobrar”, explica. Um exemplo é o livro “Queloide”, primeiro livro de poesia de Ana Rocha. “O tema é a dor de amor. Para ele, fiz um monte de porta-copos com as poesias, para afogar as mágoas, sabe?”, cita. Além disso, ela cria projetos soltos, que chama de “órfãos”, por não estarem associados a nenhuma “família gráfica”, como bandeiras, cartazes, cerâmicas e bordados – tudo feito por ela.