“Faço tudo bem solto. Nunca penso: ‘agora vou fazer isso’, ‘agora vou fazer aquilo’. Não marco hora, nunca premedito nada. E a música vem. Vem até demais. É como o vento”.
É assim, com frases curtas e um quê de poéticas, que Hermeto Pascoal descreve o seu processo de criação musical – ou melhor, o seu permanente estado de criação. Não por outro motivo, o alagoano, sozinho, soma mais de 10 mil composições oficiais contabilizadas até 2018 – quando parou de contar, mas seguiu anotando partituras em cadernos, guardanapos, roupas, portas, sapatos ou até na louça de um vaso sanitário.
E se, para Hermeto, a música vem como o vento, pode-se dizer então que os vendavais típicos do mês de agosto chegarão um pouco mais cedo em Belo Horizonte. Precisamente, chegam à cidade neste sábado (27), quando o músico se apresenta na casa de shows A Autêntica com seu grupo, formado por Fábio Pascoal, na percussão, Itiberê Zwarg, no baixo, Felipe Montanaro, no piano, Jota P, nos saxes e flautas, e Ajurinã Zwarg, na bateria.
O espetáculo integra o Tabuleiro Jazz Festival, que, em sua quarta edição, além de uma extensa e diversificada programação no distrito de Tabuleiro, em Conceição do Mato Dentro, trouxe dois shows para a capital mineira – no caso, além de Hermeto e grupo, que abrem a noite, Chico Amaral Quarteto também sobe ao palco, reunindo nomes reconhecidos na cena musical, incluindo Chico Amaral, no sax, Christiano Caldas, no piano, Pablo Souza, no baixo acústico, e André Limão Queirós, na bateria.
“O festival atrai pessoas de todo o Brasil e de Minas, mas tem um grande público em Belo Horizonte e, este ano, escolhemos a cidade para levar um pouquinho do espírito dessa grande festa da música e fazer o convite pessoalmente”, explica o curador do evento, o músico Alieksey Vianna, salientando que a proposta é trazer para a capital mineira uma amostra do festival, cujas atividades se desenrolam entre 8 e 11 de agosto. “A ideia de fazer n’A Autêntica vem justamente desse desejo de apresentar, em BH, espetáculos que tivessem um pouco do astral, em termos de uma sensação de proximidade, que temos lá”, aponta.
A proposta encontra eco nas expectativas de Hermeto para a noite. Ocorre que, na capital mineira, ao longo dos últimos anos, o alagoano vinha de uma série de apresentações em teatros ou ao ar livre, em parques e praças – normalmente, portanto, em um palco mais distante do público. Desta vez, no entanto, estará em uma casa de shows, permitindo que ele sinta de perto a vibração dos presentes. “Isso muda a maneira de criar, o jeito de fazer”, admite, ressaltando que esse é, para ele, um movimento natural e que tem a ver com o que nomeia como “Música Universal”: “Ela é 100% criativa, não é premeditada, ensaiada. É sobre tocar solto, criar solto, como se pode e como se alcança no momento da criação”, resume ele, que chega aos 88 anos premiado, prestigiado, biografado e, sobretudo, fiel à usina humana que sempre foi.
Tudo é criação
Ainda que admita que as circunstâncias podem, sim, guiá-lo por uma nova proposta de show, Hermeto Pascoal – partindo sempre de uma experiência que propõe um fazer musical radicalmente livre, que encontra abrigo nos mais variados instrumentos, convencionais ou não, sem obedecer a qualquer roteiro – pondera que tudo seria diferente mesmo que a apresentação deste sábado (27) acontecesse em um festival que ele já participou e em um mesmo palco em que já esteve. “Nunca é a mesma coisa, porque cada apresentação que faço é uma criação. E cada criação é única”, garante, acrescentando fazer tudo, na hora, sem roteiro, sem ensaio formal, ou melhor, como ele mesmo diz, “sem premeditação nenhuma”.
“Eu sou 100% intuitivo e autodidata. Tudo que eu faço vem do que estou sentindo no instante que estou criando. Por isso que eu digo que só Deus sabe o que vai acontecer em um show e mais ninguém – nem eu”, garante, evocando indireta e, talvez, não intencionalmente uma conhecida citação atribuída ao filósofo Heráclito de Éfeso. “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”, teria dito o filósofo pré-socrático ao refletir sobre como a natureza – e o homem como parte dela – está em constante mutação e mudança, de maneira que nada é imutável e absoluto, mas, sim, movimento.
Um movimento que, no caso, o velho Bruxo dos Sons sabe reger como poucos. Tanto que, em tantos anos de estrada, ele garante, recorrendo a expressões com um quê de Guimarães Rosa, nunca ter se decepcionado com a maneira como as pessoas mundo afora, falantes dos mais diversos idiomas, recepcionaram suas performances: “O público, minha Nossa Senhora, nunca me surpreendeu ao contrário”.
Música se faz junto
“Às vezes, parece até que as pessoas já tinham assistido àquele show, que eu nunca tinha feito antes. Sabe que, mesmo sem eu nunca repetir nada, essa gente sempre corresponde com sua maneira de escutar, de se envolver e cantar”, examina o artista, orgulhoso do efeito que causa nas mais variadas audiências, que geralmente acompanham com o corpo, em movimentos cadenciados, seus sons quase hipnóticos – incluindo onomatopeias, ruídos e balbucios costumeiramente reproduzidos com entusiasmo por seus fãs.
Reflexivo, o artista indutor de experiências similares a um transe parece intrigado inclusive com a sincronia que encontra nesses diálogos que estabelece com suas plateias. “É engraçado porque o público também não escuta a mesma coisa. Cada um escuta do seu jeito, porque todos, quando escutam, têm a mesma liberdade que eu de criar”, defende, estabelecendo que suas composições só estão completas quando, do outro lado da linha, há alguém aberto e pronto para recebê-las.
Para ele, portanto, é como se cada sujeito presente n’A Autêntica neste sábado (27) vivenciasse uma experiência paradoxalmente coletiva e única. “Vai ser um show só. Mas também vai ser mais de mil”, assinala, ao formular um raciocínio que, mais uma vez, ainda que sem necessariamente ter essa intencionalidade, alude a reconhecidas teorias sobre o caráter polifônico da arte ou mesmo sobre como, no campo da comunicação, uma mensagem, partindo de um mesmo emissor, chega de uma forma diferente em distintos receptadores – sendo influenciada por uma infinidade de fatores que independem da vontade desse emissor.
Uma experiência radical
Curiosamente, mesmo que Hermeto, com seu jeito despretensioso, proponha reflexões que, não raras vezes, remetem a elaborações de teóricos e filósofos que se dedicaram a sistematizar o conhecimento, a verdade é que ele próprio segue na contramão dessa lógica. Afinal, avesso a qualquer sistematização do fazer musical, ele se reconhece em um constante esforço de se afastar de hábitos que possam, eventualmente, levar a uma rigidez do seu processo de criação, ameaçando a experiência radical de música livre que ele – e talvez só ele em todo o mundo – propõe.
“Eu não quis saber de teoria, não quis estudar música, porque não queria cortar esse dom da inspiração, (da sensibilidade) de receber (a composição) e daí tocar meus instrumentos, minhas coisas todas”, defende. “Ultimamente, eu até estou pegando pouco nos instrumentos, porque eu já sou totalmente um instrumento da música, sem premeditação e com muita emoção, com aquela gana, aquela surpresa que vem, que vem assim como o vento, de um jeito que eu até me assusto, mas no bom sentido, sabe?”, conclui, deixando em aberto uma pergunta que, talvez, ele e somente ele possa responder.
SERVIÇO:
O quê. Tabuleiro Jazz Festival apresenta Hermeto Pascoal e grupo e Chico Amaral Quarteto
Quando. Neste sábado (27), a partir de 20h
Onde. A Autêntica (rua Álvares Maciel, 312, Santa Efigênia)
Quanto. A partir de R$ 40 (lote promocional). Até R$ 140 (lote 3, inteira). Ingressos à venda no Sympla.